Na última Bienal do Livro de Pernambuco, em setembro, o pesquisador Roberto Motta, filho do poeta Mauro Mota, questionou, com texto de acentos irônicos e de pontuações pertinentes, as motivações em torno das várias celebrações do centenário do pai. Roberto apontava para a mitificação (ou “mitologização”) de um personagem erigido por forças heterogêneas, mas com igual efeito de embotamento. Com base no registro de batismo do pai, o “filhíssimo” afirmou que mesmo o ano de nascimento, 1911, estaria equivocado. E ainda que sua fala não tenha sido capaz de perspectivar a si própria, dela ainda ecoa uma impressão: talvez, em torno de todas as homenagens, faltasse o principal, o olhar para as palavras, elas mesmas postas em edições esgotadas, do escritor e jornalista pernambucano.
Esse silêncio sintomático faz-se um pouco menor nesta sexta, quando a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, torna novamente acessível uma fração da prosa e da poesia de Mauro Mota.
No projeto editorial, O cajueiro nordestino (R$ 30), monografia escrita em 1954, ganha prefácio do pesquisador Clóvis Cavalcanti. Trata-se de um estudo fitogeográfico em que Mauro alerta para a devastação da planta-símbolo do litoral pernambucano. “Um texto científico, mas também muito poético, com estilo próprio, bonito, de leitura agradável, que retrata bem quem foi Mauro Mota”, afirma Clóvis Cavalcanti. Fernando Freire, presidente da Fundaj, acrescenta: “Ao aprofundar a origem, o valor e a exploração do cajueiro, Mauro Mota termina por oferecer a mais emblemática metáfora das dificuldades e potencialidades do Brasil e do Nordeste brasileiro”.
Os dois outros títulos são coletâneas. 100 crônicas escolhidas (R$ 25), colige textos publicados quase que diariamente entre 1966 e 1984, na seção Agenda, do Diario. A organização e a apresentação foram realizadas pelo escritor e pesquisador da Fundaj Paulo Gustavo. “São crônicas em que Mauro comenta a atmosfera cultural do estado, casos pitorescos, humorísticos, colocando a cultura pernambucana sempre em primeiro plano”, explica o organizador. Por sua vez, a antologia 100 Poemas escolhidos (R$ 25) resulta de seleção realizada pela professora da UFPE e colunista deste jornal Luzilá Gonçalves. O título é dividido em dez seções: Poesia de cunho social; Memórias e anedotas da província; Cantos de amor ao Recife; Em torno do tempo que passa; Poemas de cunho religioso; De amor e de morte; Sobre o fazer artístico; A fala da fauna; A reflexão metafísica e Os objetos falam. “Diante de uma tal poesia, como evitar que nos invada um tal sentimento de gratidão, uma élan de alegria nos domine, porque alguém soube dar nome ao que obscuramente sentíamos surdir em nós?”, questiona Luzilá. O lançamento compõe o evento Mauro Mota: 100 anos de poesias, com realização hoje, a partir das 14h30 na Fundaj (Av. 17 agosto, 2187, Casa Forte).
POEMAS DE MAURO MOTA
0 BOI DE BARRO
A Abelardo Rodrigues
Andando em muitos sapatos
e jamais nas suas patas,
Entre enormes chifres curvos
sente-se (o boi) entre aspas.
É um boi verde vidrado
acuado em cima da estante.
É um boi desenterrado
telúrico e ruminante.
Quem o desenterrou foi
Abelardo em Tracunhaém.
No barro da beira-rio
estava escondido o boi
desgarrado do rebanho.
Feito do gado anterior,
de estrume e de capim seco,
é este boi ruminador.
Estava desfeito ou feito?
No ato da exumação,
apareceram sangrantes
as feridas do aguilhão,
da corda e do pau da canga,
da asfixia do cambão,
do ferro em brasa nas ancas,
da chaga da castração.
As quatro rodas chiadeiras
do carro que já puxara
rodaram sobre o esqueleto,
fizeram sulcos na cara.
A semente vacum dentro
do chão mole do curral.
O boi vegetariano,
vegetal e mineral,
comeu do pasto e foi pasto,
misturou-se com o chão
para nascer no roçado,
oculto na plantação,
dando marradas no vento
da várzea pernambucana,
esse boi de chifres doces,
chifres de cana-caiana.
Toca o chocalho. O mugido
do boi de barro enche a sala.
(Cresce a grama no tapete.)
Pego no boi, ele racha.
De Os Epitáfios-Poemas. Rio de Janeiro:Livraria José Olympio
Editora, 1959.
DOMINGO NO RECIFE
Mauro Mota - Fragmento
Vejo do cais da Rua da Aurora,
— o domingo fugindo nas ioles,
na cor da tarde, no vôo dos passarinhos,
na bicicleta de Suzana.
Assisto ao suicídio do domingo no Recife,
o domingo jogando-se da Torre do Diario,
na música do carrilhão batendo meia-noite.
Receio de entrar na madrugada fria.
Recolho na praça as horas despedaçadas.
Quero que este domingo seja a antecipação da eternidade.
(In Voz Poética, CD organizado por Paulo Bruscky. Recife: CEPE-UFPE, 1997)
Para ler e ouvir o poema na íntegra e muito mais, clique neste endereço:
ELEGIA n° 1
Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas.
A alma dos gestos e, dos lábios quentes.
Ainda, as frases pensadas só em certas.
Tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
Mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes.
Fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! Ah! Teus cabelos!
Gesto de desespero e despedida,
Para ficares de qualquer maneira
Pelos fios castanhos presa à vida.
De Elegias. Edição Jornal de Rio, 1952.
O CÃO
A Edson Nery da Fonseca
É um cão negro. É talvez o próprio Cão
assombrado e fazendo assombração.
Estraçalha o silêncio com seus uivos.
A espada ígnea do olhar na escuridão
separa a noite, abre um canal no escuro.
Cão da Constelação do Grande Cão,
tombado no quintal, espreita o pulo:
duendes, fantasmas de ladrão no muro.
O latido ancestral liberta a fome
de tempo, e o cão, presa do faro, come
o medo e atreva. Agita-se, devora.
Sua ração de cor. Pois, louco e uivante,
Lambe os pontos cardeais, morde o levante;
E bebe o sangue matinal da aurora.
De Os Epitáfios. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.
Saiba mais
Abertura
14h30 - Fernando Freire, Presidente da Fundação Joaquim Nabuco
Leda Alves, presidente da CEPE
14h45 - Painel Mauro Mota: 100 Anos de Poesia e Cultura
Coordenação: Leda Alves (Cepe)
Mauro Mota Pesquisador Social: Fátima Quintas, escritora e antropóloga
Mauro Mota Poeta: Luzilá Gonçalves, ensaísta, romancista, professora da UFPE
Mauro Mota Cronista: Paulo Gustavo. Escritor e Mestre em Teoria da Literatura, da Fundaj
17h30 - Homenagem à pintora e escritora Marly Mota, viúva do escritor
17h40 - Lançamento dos livros
Por Paulo Carvalho, do Diario de Pernambuco